segunda-feira, 8 de julho de 2013

O terceiro Estado - Um comentário histórico sobre as manifestações em 2013


Alcino Lagares*

Espantados governantes olham a caravana de governados passar. Ela passa por que... O povo é soberano!
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Eis o que reza o parágrafo único do artigo 1.o da Constituição Federal do nosso Brasil.
Ora, então o povo é soberano?!
Como assim?!
Um olhar um pouco mais atento faz-nos perceber que o povo é um soberano que não pode exercer a soberania. E por que não pode? Porque a exerce através de seus “representantes”.
No único instante em que exerce a soberania _ o momento do voto _ ele o faz tão somente para entregar sua liberdade política a um “representante” através de uma “eleição”. Nesse exato momento, o “povo soberano” torna-se “vassalo” e elege os seus “reis” para que estes ocupem a direção das atividades de interesse público em dois dos três poderes e nos três níveis da estrutura social: municipal, estadual, e federal.

Quem são esses “reis”?

São mágicos!
São seres especiais, nascidos com um “dom”, posto que, sem nenhuma
formação nas letras jurídicas, na ciência política, na sociologia, na antropologia,
na filosofia, na estatística, na psicologia, na administração, na economia, ou em
qualquer outra área das ciências sociais, “sabem” o que é melhor para o povo!
Em síntese: um bando de ignorantes espertos diz à sociedade brasileira
que esta deve entregar-lhe a sua liberdade política através da eleição, e os doutos
acreditam neles...
Em lugar de um “tribunal da democracia”, temos um Tribunal Superior ... Eleitoral!
Neste emaranhado de ideias, confundem-se até mesmo cientistas políticos, os quais têm se pronunciado sobre o movimento jovem brasileiro quando afirmam: “não é possível democracia sem partidos”. E por aí vamos...
Tenho 65 anos. O mundo que circundava a minha geração, enquanto adolescente _ já tendo sido superadas as nefastas ideologias do fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler _ era bipolarizado ideologicamente: de um lado, um capitalismo gerador de riquezas (mas, péssimo distribuidor destas) e, de outro, um socialismo distribuidor da miséria entre o povo (enquanto integrantes da cúpula acumulavam riquezas). As mulheres eram socialmente reprimidas. No Brasil, um movimento social implantara, a partir de 1964, um governo de poucos. Nesse universo, nós, jovens, adquirimos a capacidade de sonhar utopias, em busca de uma sociedade mais justa.

Houve mudanças: as mulheres conquistaram direitos _ que se estenderam muito além da “queima de sutiãs” _, foi derrubado o muro de Berlim, dissolveu-se a União Soviética, o Brasil retornou à democracia.

Hoje, a juventude _ produto de uma “sociedade de mercado” _ encontra-se desencantada: socialmente, encontrou a “liberdade” sexual, mas se sente perdida nela. Economicamente, percebe uma péssima distribuição de renda.
Politicamente, vê-se sem vez e quer ter voz. Mas, não sabe como.

O que é democracia?

Por volta do ano 508 a. C., na Grécia, Clístenes, através de uma revolução, derrotou o tirano Hípias. Dividiu Atenas em dez distritos (“Demos”), cada um desses devendo ser representado por cinquenta homens, cujo conjunto constituía um conselho, a “Assembleia dos 500”. O governo (“Cratos”) passou a ser exercido pelo povo dos distritos: Demos + Cratos = “democracia”.

De trinta em trinta dias, revezavam-se os 50 representantes de cada distrito na administração da “Polis” (a cidade-estado) e, quando necessária uma decisão sobre uma situação complexa, reuniam-se os 500. Ninguém recebia remuneração para a prestação de um serviço de interesse geral, eis que o ideário
daquela sociedade estava contido na “Paidéia” (a formação do homem para a
vida política).
Era apenas um começo. Era uma democracia que excluía as mulheres; uma democracia só de homens, e de homens livres, já que havia escravos em Atenas.
Mas, a democracia floresceu de diferentes modos em nosso planeta: através de monarquias ou de repúblicas, de presidencialismo ou de parlamentarismo, e de formas mistas.

Qu’est-ce que Le tiers état?
(O que é o terceiro estado)
“Le plan de cet écrit est assez simple. Nous avons trois questions à nous faire. 1° Qu’est-ce que
Le Tiers état? — TOUT. 2° Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans l’ordre politique?
 —RIEN. 3° Que demande-t-il?
 — À ÊTRE QUELQUE CHOSE.” (Emmanuel Joseph Sieyès)

“O plano deste texto é bem simples. Temos três indagações a nos fazer. 1a O que é o Terceiro Estado?
- TUDO. 2a O que tem sido até agora na ordem política? - NADA. 3a O que ele exige? – SER ALGUMA COISA.”

Entre 1748 e 1836, viveu Emmanuel Joseph Sieyès _ um abade da diocese de Chartres, França.
A França vivia uma “sociedade estamental” _ O “estamento” seguiu-se ao feudalismo na Europa, na Baixa Idade Média (a partir do século XI), impondo, pela “divina vontade” conforme se explicava, uma hierarquia descendentepartir de uma aristocracia urbana, com pouca mobilidade social.

Havia três estamentos (ou “estados”) hierárquicos abaixo do Rei:
1.o estado, o clero;
2.o estado, a nobreza;
3.o estado, o povo.
O povo (estado “não privilegiado”) trabalhava e pagava impostos.
Os dois primeiros estados eram os “privilegiados” (não trabalhavam,recebiam os impostos do povo)!
O abade Sieyès elaborou um manifesto com o título “Qu’est-ce que Le tiers état?” (“O que é o terceiro estado?”), com pouco mais de cem páginas, no qual expressou o sentimento do povo francês em busca de uma “democracia”.
Essa obra _ ao lado dos escritos de Jean-Jacques Rousseau (“Do contrato social”: a vontade geral não pode ser representada), John Locke (“Segundo tratado sobre o governo”: todo homem nasce proprietário... de seu próprio corpo. O que ele produzir com suas mãos deve pertencer-lhe e a ninguém
mais), e Thomas Hobbes (“O Leviatã”: os indivíduos são iguais por natureza, mas desiguais socialmente, e ao Estado compete manter essas desigualdades através das leis) _ passou a fundamentar a necessária ideologia da Revolução Francesa em 1789, para a conquista da liberdade política.
Nos encontros e desencontros dos jovens brasileiros, que ora se manifestam nas ruas das maiores cidades, é perceptível a natural dificuldade de expressarem-se politicamente. Óbvio. São jovens. Têm menor experiência. Cabe aos mais velhos desta tribo verde e amarela explicar-lhes e dar significado às
suas reivindicações e à sua justa indignação, por mais simples que possam
parecer.

Exemplos: aquela pessoa com o humilde cartaz reclamando a volta de uma “tomada de 2 pinos” significa sua indignação por ter-lhe sido negadodireito de participar de decisões (inclusive desta que lhe exige agora adaptar-se aos 3 pinos); aquela outra pede ração para seu cão. Sem importância? Ridículo?
Não. Ela quer significar que há uma péssima distribuição de renda (tão ruim que
não lhe é possível sequer alimentar seu cão).

Direta já!

Fala-se numa “reforma política”. No entanto, o conteúdo do que se propõe nessa “reforma” não reformará nada de interesse do povo!

_ Financiamento de campanhas? Por quê? Qual é o “retorno” que esperam os financiadores, uma vez eleito o financiado?
_ Mais ou menos partidos? E daí? Essa é apenas uma forma de distribuição das fatias do “bolo” entre os “reis” comensais!
O povo não precisa de “partidos”. O povo precisa da soberania por “inteiro”.

A reforma política que o povo precisa e quer tem nome: democracia direta!
Como exercer, em lugar de eleições diretas, a democracia direta?
Pelos computadores. Pela Internet. Declarando diretamente o que queremos, e não através de “representantes” que não representam ninguém a não ser a si mesmos.

Soberania não pode ser objeto de representação!

As grandes questões sociais têm sido tratadas como se estivéssemos no século XIX. Ocorre que estamos no século XXI!
Podemos substituir as humilhantes filas, por terminais de computadores.
Quando você, ao conquistar ou renovar sua Carteira Nacional de Habilitação põe sua impressão digital numa dessas “máquinas pensantes”, fica ali registrada a sua necessária passagem.
Podem ser, a baixo custo, instalados tais terminais em agências lotéricas, agências de correios, estabelecimentos públicos, e agências bancárias para a realização do “voto” eletrônico. Talvez esse processo possa até mesmo ser estendido pela “Internet”, diretamente de sua casa.
O voto deve ser um direito de cidadãos livres, um dever cívico, e nunca uma obrigação legal.
O “sufrágio” _ a parcela do povo que tem direito de votar _ seria verdadeiramente universal.

As questões de interesse nacional seriam rotineiramente submetidas a um “plebiscito” por esse processo tão simples de escolha num processo informatizado e, aquelas que requeiram decisões em regime de urgência, uma vez postas em execução, seriam submetidas a um “referendo” pela mesma forma
simplificada.

Quando você está doente, quer saber se o médico que vai exercer os necessários cuidados com sua vida é um profissional competente, e não apenas “bom de conversa”. Se você vai viajar, quer saber se o motorista que vai cuidar de sua vida na estrada é um profissional sóbrio, que respeita o próprio ciclo
biológico, e não se envolve em acidentes, e não apenas “bom de conversa”.

Então, por que, para cuidar da vida de uma sociedade inteira, deveríamos ouvir aqueles que apenas são “bons de conversa”?!
Podemos substituir os mágicos “reis” por funcionários qualificados.
_ Em lugar das eleições, o concurso público.
_ Em lugar de falastrões, aqueles que demonstrarem conhecimento e competência para o exercício das funções públicas em todos os níveis, e em todos os poderes. No Brasil, todas as pessoas _ desde que tenham qualificações
_ poderão se candidatar aos cargos públicos e submeterem-se aos concursos, extinguindo-se os privilégios dos mágicos.

Ao término do governo de poucos instituído em nosso País em 1964, o povo foi às ruas e pediu “DIRETAS JÁ!”.
Tivesse ele um pouco mais de maturidade política, certamente o grito das ruas poderia ter sido “DIRETA JÁ!”
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* O autor é coronel da reserva da Polícia Militar de Minas Gerais,
presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa
da Polícia Militar, autor dos livros “Sociedade sem violência”, “Míope, o
político descamisado... da Tessália”, e “Discurso sobre a proteção social”.
É autor do termo “Policiamento Comunitário” e da cartilha de mesmo
título, contendo a filosofia de polícia comunitária.
Agraciado pelo Centro de Estudos da Gestão da Defesa Social do
Consulado da Espanha com o “Prêmio Internacional CEGEDS de Excelência
em Defesa Social”, na categoria “Excelência em Pesquisa”, pelas relevantes
contribuições à proteção da sociedade, no aspecto da “Confiança na ordem e
na capacidade do Estado preservá-la”; e, pela Polícia Militar do Estado de
Minas Gerais, com o “Diploma de Benemérito Notável”, em que se lhe
reconhece a elevada qualidade de colaborador do aprimoramento da Polícia
Militar, como “Pesquisador Voluntário”, sem remuneração nem qualquer
condição onerosa ao Estado.