sexta-feira, 3 de junho de 2016

Impeachment - A Defesa de Dilma - Parte I

Através de um teclado do difundido editor de textos Word (antigamente diríamos: através da pena dourada de uma caneta tinteiro) o senhor Eduardo Cardozo redigiu a defesa de Dilma Roussef. Aqui vamos analisar o texto de sua defesa, e encetar um olhar crítico sobre a mente deste advogado.

Esta peça analisada constitui-se de 201 páginas de um texto histórico, que vale a pena ser lido.

Detrás de um escudo

De modo dramático e emocional, Eduardo Cardozo, logo na página 2 de sua defesa, desenha o escudo da sua defesa:

"Vivemos, hoje, felizmente, sob a égide de um autêntico Estado Constitucional, que em muito suplanta a feição estrita e limitada da expressão "Estado de Direito", ao mertos nos moldes em que teoricamente foi concebida, a partir do final do século À'VIII, em vários países do mundo ocidental (Rechtsstaat, État de Droit, Stato di Diritto, Estado de Derecho, ou a anglo-saxônica "rufe of laul' que para alguns a ela se equivale)."

Leitor, acorde a sua consciência, e julgue se a expressão "sob a égide de um autêntico Estado Constitucional" não é muito poderosa para um país tão novo como o Brasil. Se Eduardo Cardozo retirar de seus olhos a venda espessa, vai perceber que nosso "Estado Constitucional" é uma máquina movida à PROPINA. De semelhança com a gasolina, guarda somente a terminação ("INA"). Os últimos fatos corroboram esta afirmativa.

Em seguida, ele cita estados europeus, o velho mundo. Mas dizendo velho, queremos dizer maduro. A Europa veio desde o nascimento da filosofia, pela mão dos gregos, concebeu o comércio e as moedas, formou impérios memoráveis e iniciou o uso do direito. Depois do esfacelamento destes impérios, notadamente do romano, ela mergulhou em uma Idade Média, passou pela peste negra, e experimentou os mais baixos estados da raça humana em termos sociais.

Ora, os europeus foram capazes de unificar suas unidades não-políticas, meros burgos, condados, ducados em estados, que após passarem por 2 guerras, hoje formam os países da notável União Européia, com uma moeda forte.

E Eduardo Cardozo quer trazer, em sua exposição pomposa, a maturidade destes estados altamente maduros para a incipiente "democracia tupiniquim" brasileira, em uma comparação absurda. O cidadão brasileiro tem pouquíssima noção da lei, e quase conhecimento nulo da Constituição. Apenas "roçamos" nos valores do "mundo ocidental" que ele cita.

A Constituição

Certo de que a Constituição será a forja deste seu "escudo", ele cita o Ministro Luis Roberto Barroso:

"a Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, vêm-se realizando eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate político amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país a estabilidade institucional que tanto lhe faltou ao longo da república"

Mas será que ele, o advogado brilhante de Dilma, não leu a Constituição em sua integralidade, para encontrar no artigo 85 o texto:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
IV - a segurança interna do País;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
V - a probidade na administração;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Se o honrado advogado de Dilma louva a Constituição naquilo que exalta o voto, por que não fazer o mesmo com a responsabilidade com a qual ela mesma chama a atenção em relação ao titular do cargo de Presidente da República ?

Será que o orçamento é apenas uma brincadeira, um assunto de somenos importância ?

Grave Equívoco

Para louvar os princípios constitucionais, ele cita J.J. Canotilho, jurista português:

"Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não
metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a da
legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de
legislação no sistema jurídico; (2) outra é a legitimidade de uma ordem de
domínio e da legitimação do exercício do poder político. O Estado
'ímpolítico' do Estado de Direito não dá resposta a esse último problema:
donde vem o poder. Só o princípio da 'soberania popular' segundo o qual
'todo o poder vem do povo' assegura e garante o direito à igual
participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o
princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos
juridicamente regulados serve de 'charneira' entre o 'Estado de Direito' e
o 'Estado Democrático' possibilitando a compreensão da moderna

fórmula 'Estado de direito democrático"

Quando vemos as discussões na Televisão, nos momentos em que as redes de maior audiência se curvam ao apelo da nação de ver o que está acontecendo, achando que estamos sabendo o que está sendo discutido, a sensação é outra quando lemos o texto da defesa, em sua continuação, na página 3, que aqui reproduzimos:

"Será, assim, um grave equívoco constitucional e democrático, a busca de qualquer compreensão jurídica e política das regras que tipificam os crimes de responsabilidade e disciplinam o processo de impeachment da Presidenta da República, em nosso país, com esquecimento involuntário ou desatenção proposital a esta realidade axiológica subjacente ao texto da nossa vigente lei maior"

O distinto advogado classifica de "um grave equívoco constitucional e democrático" impor o Impeachment, porque considera, baseado no que diz Canotilho, a "soberania popular" um bem mais valioso do que a Constituição. Esta é uma visão distorcida de Democracia (Leiam sobre Democracia). Voto acima das Leis Constitucionais. E onde está a prova, na palavra de Eduardo Cardozo, desta cegueira? Esta na expressão:

"com esquecimento involuntário ou desatenção proposital a esta realidade axiológica subjacente ao texto da nossa vigente lei maior"

Cardozo oscila entre o lado bom e o lado mau da Lei. Quer o prevalecimento da "soberania popular" como um axioma da legitimidade do cargo do Presidente da República, diga a Constituição o que disser, pois concorda com Canotilho (e ninguém cita outrem, sem que com ele concorde, quando usa sua citação como justificativa).

O povo põe, mas não tira

Se a "soberania popular" valeu para colocar o Presidente no cargo, vejam o que o advogado Cardozo diz na página 4 desta mesma sua defesa:

"A Presidenta da República não tem o poder de determinar a dissolução do Congresso Nacional, da mesma forma que não pode ser desligada da sua função por uma mera avaliação política da inconveniência de sua permanência pela maioria dos membros do Poder Legislativo."

Ora, pelo clamor popular, motivado pela conversa ambígua e indevida de Dilma com Lula, sobre o "habeas corpus institucional", que impediria este último de ser julgado pelo terrível juiz Sérgio Moro, o Congresso Nacional sentiu-se legitimado a iniciar o processo de Impeachment. E o Excelentíssimo advogado diz que se trata de "mera avaliação política da inconveniência de sua permanência pela maioria dos membros do Poder Legislativo" ? "Mera avaliação política" ? Isto é DESPREZO pelo povo.

O povo, neste "sistema democrático torto" que é  sistema eleitoral brasileiro tenta tornar factível, serve para colocar alguém no cargo. Mas para tirar não serve. Então não houve panelaços de noite, nem "Fora Dilma", nem bonecos de Lula como presidiário ? Nós sonhamos com isto ?

Apenas alguns artigos servem

A todo momento se invoca a Constituição, como no trecho da defesa, página 4:

"As hipóteses de perda do mandato presidencial, materializadas através do processo de impeachment, como não poderia deixar de ser, são excepcionalíssimas e se afirmam em âmbito absolutamente restrito e com aplicação autorizada apenas a situações graves e excepcionais de proteção da ordem constitucional, como ocorre,
v.g., com a intervenção federal (art. 34, da C.F.), o estado de defesa (art. 136, da C.F.), e o estado de
sítio (art. 137, da C.F.)."

Deliberadamente o senhor Cardozo salta o artigo 85, pois não lhe interessa. A Constituição não se afigura como "corpo que pode subsistir aleijado".

Mas o egrégio advogado se afunda mais ainda em seu desprezo pela Constituição:

"Torna-se absolutamente impensável afirmar-se, assim, que em um regime presidencialista inserido no âmbito de um Estado Democrático de Direito, meras situações episódicas de impopularidade governamental, per se, possam ser tidos como motivos ou causas legais e legítimas capazes de ensejar a perda do mandato de uma Presidenta da República."

Notem a expressão "meras situações episódicas de impopularidade governamental". Parece até que a impopularidade (gerada pela situação econômica) é caso de ínfima importância. O povo serve para colocar no poder, mas quando se descontenta, isto é colocado na classe de "meras situações episódicas". É desprezo pelo povo.

Numeração não sequencial

Mais a frente, página 5 da peça de defesa, o advogado de Dilma ressalta:

"Esta realidade valorativa de proteção à Chefe de Estado e de Governo, para bom resguardo das próprias instituições, é a razão jurídica e política que explica e justifica a regra protetiva prevista no art. 86, § 4º, da nossa lei maior. Afirma este dispositivo que:

Art. 86. (...)

§ 4°. O Presidente da República, na vigência do seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício das suas funções".

A Constituição Federal comentada pelo STF apresenta os artigos 85 (o que não interessa a Eduardo Cardozo) e 86 comentados conjuntamente. E por que ? Porque ambos tratam da Seção III do Capítulo II do Título IV da Constituição, cujo tema é "RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA". Um não pode ser citado sem o outro, e a forma como foi colocado na Defesa de Dilma representa uma desonestidade em relação à Comissão Especial de Impeachment. O artigo 85 foi reproduzido anteriormente.

E o uso que ele faz do artigo 86, parágrafo 4 é correto ? Lamento dizer que não, e cito o comentário da Constituição Federal comentada pelo STF, disponível no link  http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=960:

"O que o art. 86, § 4º, confere ao presidente da República não é imunidade penal, mas imunidade temporária à persecução penal: nele não se prescreve que o presidente é irresponsável por crimes não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais crimes, não poderá ser responsabilizado, enquanto não cesse a investidura na presidência. Da impossibilidade, segundo o art. 86, § 4º, de que, enquanto dure o mandato, tenha curso ou se instaure processo penal contra o presidente da República por crimes não funcionais, decorre que, se o fato é anterior à sua investidura, o Supremo Tribunal não será originariamente competente para a ação penal, nem consequentemente para o habeas corpus por falta de justa causa para o curso futuro do processo. Na questão similar do impedimento temporário à persecução penal do congressista, quando não concedida a licença para o processo, o STF já extraíra, antes que a Constituição o tornasse expresso, a suspensão do curso da prescrição, até a extinção do mandato parlamentar: deixa-se, no entanto, de dar força de decisão à aplicabilidade, no caso, da mesma solução, à falta de competência do Tribunal para, neste momento, decidir a respeito." (HC 83.154, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 11-9-2003, Plenário, DJ de 21-11-2003.)

Ele se refere a crimes que não estão relacionados à função do Presidente. Ocorre que o Orçamento É FUNÇÃO RELACIONADA AO EXERCÍCIO DO CARGO DE PRESIDENTE, como deixa claro o artigo 85.

Na parte II continuaremos o comentário à defesa de Dilma Roussef.



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